O que fazer do incômodo de entrar numa loja – virtual ou física ( respeitando o distanciamento social e as normas de higiene) – e descobrir que a roupa “one fits all” – aquela que serve para todo mundo - é uma experiência frustrante – poque não me serve? Ou fica grande demais ou se ajusta prendendo a respiração e mostrando as dobrinhas de gorduras que não quero mostrar.
O mito de tamanho único vem da receita de que o que serve para um é bom também para os outros. A pergunta fica e a resposta não aparece : - qual a medida do que vale para todos?
Do ponto de vista do que nos iguala - a nossa humanidade - o sentimento de pertencimento e de inclusão não pode ser menos do aquilo que nos diferencia. Mas, cada um tem necessidades, sonhos , desejos, talentos, vocações únicos. E isso não serve para todos os outros.
Ainda me lembro daquela velha publicidade de tintas em que o locutor dizia : "- O que seria do branco se todos gostassem do amarelo?” O direito a gostar e o lugar para desgostar devem ser preservados naquilo que interessa a cada qual. Esses gostares surgem das nossas vivencias, referencias culturais que definem preferencias estéticas e modos de viver.
Hoje, a pergunta sobre o futuro de cada um de nós, depois que a pandemia deixar de ser pandemia, estimula o exercício do olhar a respeito do que nos serve. E esse olhar será uma decorrência das escolhas de agora e das descobertas que nos propusermos fazer sobre nós mesmos: nas convivências obrigatórias e na solidão indesejada. O que nos comove e o que nos move?
A duração das recomendações sobre a manutenção do isolamento e o afrouxamento das medidas que estão sendo introduzidas com as saídas ensaiadas, para o pânico de especialistas , alegria dos incrédulos na doença propagada em cinco continentes, e o temor dos que não compreendem a presença da morte além as estatísticas - em si e no mais próximo – tem criado uma oportunidade especial: observar os ciclos de prazer , tédio, raiva, medo e esperança que passamos no cotidiano – e notamos, se aceitamos encarar . E podemos ainda, ficar diante de desejos que não foram reconhecidos.
É preciso ter coragem para experimentar a roupa que dizem servir para todos e admitir que ela não nos cai bem. Contrariar o senso comum do que é, o que deve ser, e aceitar que se está na contramão daquilo antes defendido com vigor também pede calma. A calma é a audição da alma, que se manifesta constantemente, tão quase silenciosamente .
Nesse tempo de questionar – além do consumismo desnecessário – e de tudo o que se diz sobre respeito aos limites do outro e do papel importante dos abraços e carícias presenciais, há mais camadas de descobertas ou de redescobertas a serem feitas. O que escondemos de nós mesmos, de quem somos, por inércia, ocupação desnecessária ou negação pura e simples. O que finalmente queremos?
Sim, vem crise. Esse momento em que as escolhas nos descreverão por muito tempo. Até que surja uma nova encruzilhada.
Reconhecer que se vive pelos condicionamentos do outro que por acaso é condicionado e valorado segundo nós mesmos e as expectativas de não sei mais quem, e que , isto no final das contas não têm a mínima importância. Sim, o que importa é não perder o contato com aquilo que escondi, esqueci ou não quis ver, e que surge quando a poluição some, pela diminuição das nosssas próprias atividades fumaceiras.
Do que eu, de fato, preciso? O que desejo, o que me alegra?
Responder a essas perguntas honestamente poderá implicar na revisão dos armários - das roupas e dos relacionamentos, e dos fazeres e afazeres - o que me imponho e o que me é imposto . São projetos, planos e a ambições - que podem ser maiores, que podem ser insignificantes - mas cujos sentidos será inadiável questionar.
Aquelas perguntas tão fáceis de serem feitas exigem respostas que poderão custar a vida inteira para serem encontradas. Porém, na experiencia do silencio obrigatório e nos barulhos impostos pelas convivências diuturnas há a chance de serem buscadas. Mas tem a distração das lives...
Criar o anteparo protetor ao vírus do que nos distrai, nos tira o foco da nossa dor – reduzindo a possibilidade de lidarmos com ela, compreendê-la, acolhê-la e integrá-la saudavelmente como parte do nosso aprendizado - e conter as distrações que nos impedem viver a nossa alegria - aquilo que nos enche de vitalidade, mas que adiamos contatar, dragados pelos momentos que sucedem velozmente um atrás do outro e somem , apenas engolindo o tempo - vai gerar um ambiente precioso para que ressurja a nossa coragem da nossa própria escuta.
É preciso mesmo coragem para botar de lado a roupa que clama servir a todos e aceitar que somos universais, mas únicos. É preciso mesmo ter coragem para, se for preciso, seguirmos nus.