Não sei você, mas eu, eu olho para lençóis de casal que vestem o colchão segurando-se com elásticos na beiradas, com respeito. Não enquanto estão esticados na cama sem permitir uma ruga, mas quando saídos da máquina de lavar, secos, ou do varal enxutos, me esperam para dobrá-los.
Permaneço em isolamento social e físico das pessoas, obediente ao meu temor pelo invisível predador que ataca quando nos abraçamos, tocamos ou nos falamos sem dispositivos intermediários. Também me curvo aos ditames de especialistas que, despojados da arrogância do conhecimento, declaram saber que quase nada sabem para debelar a ameaça que ronda sem pudor .
Na nova rotina do confinamento incluo tarefas que não me eram cotidianas. E um grande aprendizado vai se acumulado para ser integrado na vida que segue pós pandemia. Dobrar lençóis com elástico é um dos desafios.
Marie Kondo, a especialista na alegria da organização doméstica oferece instruções que abraço. Porém, seguindo as orientações da especialista, as minhas habilidades cognitivas são postas à prova quando a parte do tecido do lençol com elástico não se rende a uma posição que me permita manter em forma exata – quadrado ou retângulo – para guardar na prateleira do guarda roupas , o insone lençol. E, se eu me fixo naquela tarefa , o mundo pandêmico desaparece, engolido pela rebeldia do elástico que parece ter vida própria.
Sem querer, descubro que a minha mente tem o poder de me levar para dimensões em que criaturas, como lençóis com elástico e sem elástico, estantes empoeiradas, louça suja, plantas sedentas, chão riscado, são parte de um universo com demandas tão urgentes e específicas e caso não sejam atendidas nos fazem sucumbir lenta, mas inexoravelmente. Quem acordou cedo, com ressaca, e viu a pia cheia com a louça acumulada de dias, a roupa jogada no chão molhado , o vaso onde a flor vicejava agora seco e mal cheiroso, e sim e o lençol de elástico encolhido e disforme sobre a cadeira, sabe do que estou falando.
De posse dessa descoberta também me dou conta que as conversas comigo mesma, imposta pelo vírus que não mais aceita as longas horas diante da televisão relatando a sua odisseia pelo mundo e ao meu lado , revelam novas aptidões minhas, até então desconhecidas.
Tenho a capacidade de me levar para lugares e ficar em mim mesma. Posso usar um lençol com elástico para visitar outros universos, mas posso usar apenas e simplesmente o meu olhar sobre o meu corpo em movimento lento e consciente da respiração.
Descubro que observar detalhes dos meus pensamentos, que eram estranhos à minha atenção, são portas de conhecimento para acessar dimensões de minhas até então ocultas. Descubro ser capaz de dar um passo de cada vez, de parar e respirar, de me encantar com a luz do sol filtrada pela cortina, de me alegrar quando os periquitos visitam a árvore na rua adiante e tagarelam em algaravias.
Descubro que há novas regras a serem descobertas e escritas para que a felicidade deixe ser a riqueza contábil de alguns e seja um bem coletivo, acessível a todos. Descubro que há tempo se encaro o tempo como aliado para não adiar, que a procrastinação não é a resposta para realizar sonhos escondidos no medo.
Aprendo a arte de dobrar lençóis com elástico . É preciso ter respeito à vocação do elástico que enruga o tecido por onde passa.
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