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Foto do escritorOlga Curado

Conversa íntima


Eu tenho me emocionado com a tristeza sem esperança das pessoas que não podem ficar em casa e, quando saem às ruas não tem aonde ir, ou como seguir, apenas tendo em si a urgência da própria sobrevivência e também daqueles próximos, em situação semelhante.


As cenas de lamentação são reproduzidas pelas mídias como teatros de carpideiras aos poucos nos insensibilizando pelas exposição repetitiva das tragédias. E, como os monstros que engolem as vidas dos seres silenciados pelo pânico, também cada dia, engolimos o choro para seguir, mas essas lágrimas represadas rompem os diques da indiferença, porque, cada um de nós, intimamente, sabe que é parte daqueles que escancaram o sofrimento na nossa frente.


As distrações impedem a conversa íntima. A conversa sobre o interior profundo onde escondemos a vergonha, por termos ido tão longe; o medo , de não sermos mais o que nos acostumamos ser; a ansiedade ao tentar trazer o futuro diante dos nossos próprios olhos, para que nos acalmemos pela certeza de que tudo será como antes.


Mas, essa é uma conversa íntima. E pode acontecer em público. Nada tão íntimo quanto o público que não diferenciamos por nome, endereço, crença, sabedorias. A ignorância que nos torna iguais permite falar entre nós, sem censura, sobre aquilo que está mais profundamente enraizado em cada qual e não é olhado: um ser que tem escolhas, e foge delas , mas blasfema contra o destino.


A naturalidade com que compilamos a dor alheia num exercício de voyerismo técnico é o efeito da dimensão inaudita da coisa - objeto com opiniões e neutralidades - em que nos transformamos, e por extensão, o outro.


Olhei ainda há pouco , da minha janela, a rua. Passava, sob as minhas vistas um homem, uma mulher e um cão. O casal de máscara, o cão, sendo cão . Não tinham pressa. Havia tempo e espaço naquele momento, na calçada, para o homem, a mulher e o cão. Não vi quando o cão parou para urinar ou para defecar. Fez as suas necessidades longe das minhas vistas. E também, fora das minhas vistas a ansiedade, o medo, o infortúnio do homem e da mulher que caminhavam para que eu os pudesse ver. Troco o meu ângulo de observação para os prédios ao lado, à frente, e as janelas, na sua maioria estão cerradas. Uma silhueta aqui e ali.


No prédio em construção – tarefa essencial – ao lado, há barulhos, tem gente trabalhando na obra. Tento enxergar mais perto os operários – sem máscara. Penso se estão infectados pelo novo vírus que fechou as janelas, fez o casal caminhar devagar pela minha rua levando o cão às três horas da tarde. Não vou saber. Mas quero saber. Haverá números ao final do dia fazendo um balanço neutro da tragédia. E haverá carpir editado.


Mas preciso e quero ter uma conversa íntima com os números que contam doentes, mortos, desempregados, invisíveis. Porém os números não mostram a sua intimidade. Registram sem falar além da nomeação permitida, somas e subtrações. Descubro que esse esforço deve ser meu. E quando eu o faço, eu me emociono e tenho essa conversa íntima agora com você.

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